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O mundo que trespassa a obra de Sérgio Gurgel é composto de personagens inenarráveis. Talvez, por isso, Sérgio, já na sua infância, só conseguia falar dessas figuras (as divas de Acopiara, entre elas) pela imagem com uma poética que foi amadurecendo com o artista e compondo um arquivo afetivo de memórias e materialidades. Dessas vivências, brotaram relações com mulheres, músicas, tecidos, lojas de artigos usados, entre outros. Contudo, não há uma chave fácil pois não se trata de rememorar quem eram esses rostos que aparecem em seus trabalhos, mas de amar encontrar, como quem se fascina diante do inusitado e do que não se conhece ao manter-se encantado com o presente (tanto no sentido de tempo como no sentido de dádiva) do estranhamento que permanece, que dura.
Nos rostos e objetos encontra-se um anacronismo que nos leva às imagens do sertão deslocadas do que vemos já posto sobre esse lugar, mas vividas pelo artista em Acopiara, no interior do Ceará, onde nasceu e cresceu: um outro mundo, excêntrico e dissonante interpela Sérgio Gurgel com a sua arte. São mulheres, bichos, cadeiras, adornos de um tempo que já não é mais nem passado nem presente, porém nos causa uma estranha familiaridade de estarmos em casa com eles. Da cintura fina de quem traz em bálsamo, ao mesmo tempo, a viuvez e a embriaguez da vida. Sérgio tem uma relação muito sensível com a vida dos objetos e a põe em relação com a vida desses seres de uma maneira singular. Dos móveis antigos a embalagens de remédios de tarja preta e azulejos quebrados: a composição de Sérgio consegue ser ornamental e quase mística, pois um mistério, entre morbidez e beleza, entre um sertão quase pop e trash (Andy Wahrol e Divine passam por aí), insurge calmamente como no olhar de uma galinha a ser sacrificada, a qual, na sua galinhez, sabe que não vai morrer, pois quem morremos somos nós.
Há todo um trabalho de superfícies, seja nas aquarelas, seja no óleo que adensa as superfícies de malas, cadeiras, cabides: todos abduzidos pela sua arte. Rugas de bicho, rugas de mulher, rugosa asa de galinha depenada - rugas do sensível que se dobra em arte: por exemplo, o rosto de Dona Maria que nos olha de seu mais íntimo interior de uma precundia intransponível e bela. Sendo assim, a arte de Sérgio Gurgel se afirma contemporânea no seu anacronismo e potente por sua delicadeza na transmutação dos suportes.
Kaciano Gadelha
(Doutor em Sociologia, pesquisador e curador em arte contemporânea)